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domingo, 24 de janeiro de 2021

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Medo do vírus, trabalho e falta de aula: as faces da abstenção recorde do Enem



Realizado em meio à segunda onda da covid-19, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) nunca teve tão pouca participação desde que a prova se tornou, em 2009, a principal porta de entrada para o ensino superior. Mais de 2,8 milhões de inscritos deixaram de fazer o exame no último domingo. O número, gigantesco, revela histórias de desalento de Norte a Sul, em um país que tem fracassado na gestão da Saúde e da Educação durante a pandemia.

Rostos pretos, brancos, molhados de suor ou de lágrimas são a cara da abstenção do Enem. Os ausentes no exame são jovens como o Ruan, de 22 anos, que trabalhava como motoboy no Rio enquanto outros da mesma idade faziam a prova. Ou têm história parecida com a da Larissa, de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, que perdeu a paz depois de enterrar a tia, infectada com a covid-19, e agora vê os avós no hospital.

Muitos tiveram medo de se contaminar, caso da Manuela, de Juiz de Fora (MG), ou não puderam ir porque já estavam doentes, como o Danilo, de Parauapebas, no interior do Pará. E teve até quem tentou fazer a prova, mesmo com medo, percorreu quase duas horas em um ônibus, mas encontrou as salas lotadas e acabou impedido de entrar - história do Tiago Felipe, em Curitiba.

A segurança do exame, em meio à pandemia, foi questionada na Justiça, mas o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do Ministério da Educação (MEC), conseguiu manter as datas. Após o primeiro dia de aplicação, a Defensoria Pública da União (DPU) fez novo pedido para que as provas fossem adiadas e para que o exame seja reaplicado a todos os ausentes, mas a solicitação foi novamente negada. Hoje, estudantes fazem os testes de Ciências da Natureza e Matemática - os resultados do Enem só devem sair em março. As notas são usadas para concorrer a bolsas no ensino superior privado ou a vagas em universidades federais.

No último domingo, o ministro Milton Ribeiro afirmou que o Enem "foi um sucesso", mesmo com o índice de abstenção de 51,5%. "Para os alunos que puderam fazer a prova, foi um sucesso", disse.

Já Priscila Cruz, presidente executiva e cofundadora do Todos pela Educação, classifica o último domingo como um fracasso. "O Enem é mais um triste episódio de um Ministério da Educação incompetente, omisso e alheio à realidade da educação, dos estudantes e da pandemia no Brasil." Ela pede transparência sobre a prova. "A sociedade precisa saber a dimensão dos prejuízos causados."

O Estadão ouviu cinco jovens que deixaram de fazer a prova no último domingo. Confira os depoimentos.

Larissa Paiva, de 19 anos, moradora de Belford Roxo (RJ)

'Perdi uma tia e meus avós estão internados'

Meu maior sonho é entrar em uma faculdade. No início do ano, estava estudando para o vestibular, muito animada, até que veio a covid-19. Meu salário foi reduzido e tive de parar o pré-vestibular que estava custeando. Em março, minha tia morreu de covid (uma das 28,2 mil vítimas no Estado). Ela tinha 42 anos, deixou filho e marido. Quem teve de dar a notícia e cuidar de tudo fomos eu e minha prima. Foi um baque.

Aquilo acabou comigo. Tentei estudar por conta própria em casa, mas sozinha é difícil. As coisas estavam ficando cada vez mais complicadas, tinha o medo, porque minha mãe trabalha fora. E o luto. Perdemos amigos, conhecidos, vizinhos. Tivemos de montar uma estratégia para cuidar do meu primo. A gente chorava, secava e falava: 'Vamos agir'. Ainda queria fazer a prova, até que, em janeiro, minha avó e meu avô foram para o hospital com a covid. Estão internados e sem previsão de alta. Não temos contato. Ali percebi que não tinha mais estrutura para fazer o Enem. Não tenho cabeça, meu psicológico está abalado, são muitas informações.

Me sinto frustrada, inútil, quero tentar, mas não consigo, parece até que não tenho força de vontade. Meu sonho é estudar Direito porque, quando eu era pequena, não tínhamos nada em casa para comer e minha mãe foi a um supermercado para pegar comida - não roubou nada de bom, só arroz e feijão. Levaram-na para o meio do mercado e falaram que chamariam a polícia. Eu era muito pequena e comecei a chorar até que veio uma moça que falou que era advogada e defendeu minha mãe, pagou as compras e um táxi para voltarmos para casa. Depois disso, pensei: preciso ser advogada e fazer o que ela fez. Vou ficar pior quando a nota de todo mundo que fez o Enem sair, eu vir as pessoas entrando em uma universidade e cair a ficha de que não vou conseguir neste ano.

Ruan Felipe Machado, de 22 anos, morador da Maré, no Rio

'Abri mão da prova. Eu tinha de trabalhar'

No começo de 2020, resolvi que voltaria a estudar. Lembrei do cursinho popular do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré e fui. O pessoal me ajudou bastante, mas infelizmente a pandemia me quebrou. Estudei até março, mas, quando as aulas online começaram, nunca batiam com meu horário livre.

Pego serviço do meio-dia às 23 horas. E não ia parar de trabalhar para assistir às aulas online. Se eu não trabalhasse, iam faltar coisas em casa. E nunca que vou deixar isso acontecer. Ano passado, trabalhei em restaurante e como entregador iFood de bike até conseguir meu emprego de motoboy. Terminei o ensino médio em 2018, quando nasceram minhas filhas gêmeas ...

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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