Um governo flertando com o nazismo
Apesar da demissão de Roberto Alvim por causa da imitação de Joseph Goebbels, Jair Bolsonaro é tolerante com ideias de extrema-direita e estimula a guerra cultural
No seu afã de doutrinação ideológica, Bolsonaro chegou ao absurdo de dizer que o nazismo era um “movimento de esquerda”
A tese apresentada por Alvim de que a cultura brasileira está doente e precisa ser “purificada” de ideias libertárias e pluralistas faz eco com a obsessão de Hitler contra a “arte degenerada”, que, na mente do ditador, se confundia com a modernidade e com a invenção. O mesmo vale para a projeção do ex-secretário para a arte brasileira da próxima década, que será “heróica e nacional”. Para Bolsonaro e alguns de seus ministros, é isso, justamente, que a arte precisa ser para ajudar na criação de uma mentalidade conservadora ajustada aos novos tempos. O governo dá sucessivas demonstrações de que pretende fazer uma revolução cultural ao estilo da extrema-direita para impor um pensamento que se oponha ao multiculturalismo e ao politicamente correto. Os soldados do bolsonarismo, tendo à frente os filhos 02 e 03 do presidente, Carlos e Eduardo Bolsonaro (que defende, inclusive, a reedição do AI-5 e volta da ditadura), costumam chamar esse processo de “guerra cultural”. É dela que surgirá o “homem de bem” brasileiro, que emerge nas entranhas do sistema político para se tornar um protonazista empedernido, que recusa o pensamento crítico e despreza a criatividade e a inteligência, a não ser quando são usadas a favor do regime.
Doutrinação ideológica
O combate implacável ao esquerdismo e ao socialismo é o ponto crucial da guinada extremista que o governo pretende dar. Fazendo a população crer que há uma ameaça comunista no Brasil, Bolsonaro procura se posicionar de maneira mais confortável no outro extremo do espectro político e justificar seu ideário radical. O problema (para ele) é que o ambiente cultural brasileiro é democrático e não há qualquer indício de que a produção artística tenha um apelo comunista ou esteja orientada para a conquista do poder. Por isso volta-se sempre à fantasia do chamado marxismo cultural, que o astrólogo Olavo de Carvalho, ideólogo do governo, inspirado pela extrema-direita americana, vê como uma grande conspiração para disseminar o socialismo pelo mundo. Carvalho, por sinal, abandonou o pupilo Alvim e declarou, num primeiro momento, no seu Twitter @OlavoOpressor, que ele “não parecia estar bem da cabeça”. Depois embalou numa interpretação conspiratória dos fatos para livrar o governo Bolsonaro e Alvim da pecha de nazista. “Chamar o Alvim de nazista é ser caixa de ressonância da esquerda mais canalha. O Alvim é trouxa — repito —, mas de nazista ele não tem nada. Se tivesse, estaria no PT”, declarou no domingo 19. “Comunistas fazem truquinhos sujos para dar ao presidente Bolsonaro uma aparência de nazista, mas nazistas são eles. Até o Parlamento Europeu já se tocou. Enquanto isso, o lindinho Luciano Huck escolhe o homem do PC do B para seu vice. Isso já diz tudo”. Para Carvalho, “ou o Alvim pirou ou algum assessor petista enxertou a frase do Goebbels no discurso dele para assassinar sua reputação”.
No afã de doutrinação ideológica direitista de Bolsonaro, se chegou ao absurdo de dizer que o nazismo era um “movimento de esquerda”. Foi isso, por exemplo, que declarou o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em uma entrevista concedida, em março do ano passado, no canal do YouTube do grupo Brasil Paralelo, que promove o pensamento de Carvalho. Perguntado sobre a comparação entre o nacionalismo defendido por ele e o promovido no passado pelos regimes totalitários da Alemanha, da Itália e da Rússia, Araújo afirmou que “o sentimento nacional teria sido distorcido por grupos que o utilizaram para chegar ao poder”. “Uma coisa que eu falo muito é dessa tendência da esquerda de pegar uma coisa boa, sequestrar, perverter e transformar numa coisa ruim. É mais ou menos o que aconteceu sempre com esses regimes totalitários. Isso tem a ver com o que eu digo que fascismo e nazismo são fenômenosde esquerda”, disse. Alguns dias depois, em visita ao Centro Mundial de Memória do Holocausto, em Israel, Bolsonaro foi na mesma linha que seu ministro e afirmou “não ter dúvidas de que o nazismo era um regime de esquerda”. Foi desmentido no mesmo dia por representantes do Memorial do Holocausto. A tese, que procura livrar a extrema-direita de sua orientação criminosa, é considerada descabida e desonesta por acadêmicos e historiadores de todas as vertentes.
Elogio a Hitler
O flerte de Bolsonaro com o nazismo é antigo. No mínimo, ele demonstra, há duas décadas, uma tolerância inaceitável em relação a algumas ideias e iniciativas de Hitler e seus asseclas. Em 1998, o então deputado federal defendia, em um discurso na Câmara, oito alunos do Colégio Militar de Porto Alegre que elegeram Hitler como personagem histórico mais admirado em um levantamento feito pela revista Hyloea, publicada pela instituição. Hitler ficou à frente de Jesus Cristo, Tiradentes e Mahatma Gandhi. Na ocasião, os jovens argumentaram que escolheram o líder nazista por causa de sua “inteligência e audácia”, “dom da palavra” e “poder de indução”. O próprio Exército e a imprensa se manifestaram fortemente contra a escolha. Para defender os estudantes, Bolsonaro afirmou que eles estavam “realmente carentes de ordem e disciplina neste país”, já que não recebiam um bom exemplo do governo de Fernando Henrique Cardoso. O atual presidente dizia que os estudantes “têm que eleger aqueles que souberam, de uma forma ou de outra, impor ordem e disciplina”. Embora dissesse que não concordava com “as atrocidades cometidas por Adolf Hitler”, Bolsonaro ressaltou que a revista Hyloea era bancada pelos alunos e eles “têm liberdade de escrever o que bem entenderem”. Ao demitir Alvim pelo que chamou de “pronunciamento infeliz”, Bolsonaro declarou que reiterava seu “repúdio às ideias totalitárias e genocidas, bem como qualquer tipo de ilação às mesmas”. Não é isso que sua história mostra. E nem o que indica o projeto de instalar a tal guerra cultural no País.
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