Sem Trump os EUA voltam a ser os EUA
Poucas vezes as eleições americanas foram tão importantes para determinar o futuro do planeta. A virtual vitória do democrata Joe Biden representa uma derrota do retrocesso civilizatório imposto por Donald Trump, apesar da guerra judicial lançada pelo republicano contra os resultados.
Em um pleito histórico, Joe Biden venceu no voto popular e recebeu o maior número de votos já registrados por um candidato em mais de 200 anos
Margem apertada
As pesquisas indicavam grande vantagem para Joe Biden, de até 10 pontos percentuais. Mas o republicano surpreendeu, como aconteceu há quatro anos. Apesar do resultado favorável ao ex-vice-presidente, a “onda azul” esperada pelos democratas não aconteceu. Como aconteceu nas últimas eleições, os institutos de pesquisa erraram, apesar de terem divulgado que havia revisto seus métodos. No Meio-Oeste, o democrata conseguiu recuperar dois estados em que Hillary Clinton perdeu em 2016, Wisconsin e Michigan, que voltaram ao controle democrata. As projeções chegaram a apontar um possível triunfo de Biden no Texas, fortaleza histórica republicana, o que simplesmente não aconteceu. Trump ainda venceu em estados-pêndulo como a Flórida por uma margem maior do que em 2016, quando analistas previam um voto latino massivo para Biden — outra previsão furada. A relação histórica de Biden com os negros ajudou a mobilizar nacionalmente uma comunidade que se uniu no movimento Black Lives Matter e se sentiu ultrajada pelo apoio de Trump aos supremacistas brancos.
O resultado novamente expôs um sistema eleitoral imperfeito baseado na eleição indireta de delegados em Colégio Eleitoral, que na prática dá pesos diferentes aos votos dos cidadãos, dependendo da população do estado. É um modelo criado ainda no século XVIII para evitar a sub-representação de estados. Mas, com a mudança demográfica, a integração do voto dos imigrantes latinos, além da expansão urbana, passou a revelar cada vez mais distorções. A manipulação de distritos eleitorais para diminuir o peso de grupos étnicos e políticos e favorecer candidatos, conhecido pelo neologismo gerrymandering, ainda vigora, apesar da lei que garantiu o voto dos negros nos anos 1960. O sistema descentralizado impôs novamente reveses com uma barafunda de regras que propiciam manobras e contestações, como aconteceu este ano com Trump. A judicialização das eleições pode adiar o resultado oficial em vários dias, podendo inclusive levar a uma disputa na Suprema Corte. Era o que Trump queria. Ele contava com os três juízes que indicou ao tribunal, e na confortável maioria conservadora de 6 votos a 3. Mas também aí sua janela de oportunidades se estreitou. A corte negou antes do pleito uma ação dos republicanos que pode ser crucial para selar sua derrota: garantiu a contagem dos votos em trânsito na Pensilvânia, que chegariam pelo correio após o dia da votação. O último litígio em torno da Presidência aconteceu em 2000, quando George W. Bush e Al Gore brigaram semanas em torno do resultado na Flórida, e o republicano venceu a parada nos tribunais.
Trump cercou Joe Biden com uma batalha judicial, mas decisão da Suprema Corte favoreceu os votos pelo correio e limitou sua manobra
Trump sai do poder na contramão do seu discurso triunfalista. Nos últimos cem anos, ele é apenas o quinto presidente a não conseguir se reeleger. Sua ação divisionista, até na reeleição, era esperada. Ao pressentir o avanço democrata, Trump passou a tentar deslegitimar as eleições. Foi o epílogo de uma gestão destrutiva para os valores democráticos. Surfou na polarização, espalhou fake news, atacou a imprensa, ressuscitou o protecionismo comercial, insuflou a xenofobia e promoveu o racismo. Negacionista do aquecimento global, tirou o país do Acordo de Paris — o que Biden promete reverter. Instilou a desconfiança à ciência em meio à maior pandemia em um século. Atacou a globalização e investiu contra as organizações multilaterais como ONU, Organização Mundial da Saúde e Organização Mundial do Comércio. Com isso, rompeu com os aliados históricos dos EUA em todo o mundo e promoveu autocratas em países como Hungria, Polônia e especialmente Brasil. Os danos que causou terão um efeito duradouro, já que a desconfiança que promoveu às instituições unificou a metade do país. Mesmo diante de uma mudança de rumo na política americana, com uma vitória de Biden, a polarização persistirá. O democrata terá um longo caminho para diminuir a fenda que Trump abriu na sociedade americana. Mas o mundo respira aliviado
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